Nathalia Cavalcante
O diretor polonês
Krzysztof Kieslowski (1941 - 1996) apresenta entre 1993 e 1994 sua última obra:
Trilogia das Cores. Tendo como relação as cores da bandeira francesa: Trois Couleurs – Blue (1993), Trois Couleurs – Blanc (1994) e Trois Couleurs – Rouge (1994). Além das
cores, Kieslowski trouxe à tona os lemas, constituídos no período iluminista e
empregados durante a Revolução Francesa (1789): Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O primeiro traz como mote a liberdade. Julie
(Juliette Binoche) conduz a trama. Após o acidente de carro em que perde marido
e filha, passa a conviver com a solidão. Kieslowski traça planos que permitem
compreender o panorama no qual esta personagem está absorvida. Closes, detalhes
que mostram a íris das personagens. Escolha que demonstra, de certo modo, a
angústia de Julie ao se ver sozinha.
O diretor optou por
marcar as cores pelas quais faz menção. O azul está presente em objetos de
cena. Na fotografia, principalmente, no início do filme. “... a percepção das
cores é menos de natureza física do que psicológica. Segundo Antonioni, ‘a cor
não existe de maneira absoluta. (...) Pode-se dizer que a cor é uma relação
entre o objeto e o estado psicológico do observador, no sentido de que ambos se
sugestionam reciprocamente’” (MARTIN, 2003, p. 69).
A piscina onde Julie
pratica natação reflete a cor. A representação denota a condição psicológica da
personagem que mergulha, de forma literal, nessa situação. Mesmo tentando se
desvencilhar, percebe que suas atitudes são em vão. Isso porque, Julie, após o
falecimento da filha e do marido, um importante compositor, procura se desfazer
de tudo o que possa provocar lembranças. Aqui, a personagem deseja se libertar
do passado. Porém, as lembranças a aflige. Logo, Kieslowski, aponta razões para
esse incômodo. A obra, composição de Patrice, marido de Julie, não havia sido
finalizada, uma encomenda realizada pelo parlamento europeu. Nos momentos em
que Julie se vê acuada, a trilha incide, como um aviso. O diretor acrescenta
junto a inserção sonora, o fade black,
unido ao mesmo plano, fazendo parte assim, do pensamento da personagem. De
acordo com Burch, “a oposição provocada pelo distanciamento do “tema” visual e
a proximidade do “tema” sonoro produz um efeito surpreendente, assim como se
uma nova personagem tivesse entrado nesse mesmo quadro em primeiríssimo plano”
(1969, p. 120).
Kieslowski apresenta
elementos figurativos que abrem discussões a cerca da condição humana, como no
exemplo em que Julie encontra em seu novo apartamento uma ratazana com
filhotes. A protagonista não suporta ver a situação, não apenas pelo fato de
encontrar esses animais considerados repugnantes, mas também, por não tolerar qualquer
contato com representação materna. Assim como no momento em que está na piscina
e crianças pulam. Julie se sente incomodada, acuada.
Blue revela que a liberdade almejada pela protagonista,
pode ser considerada uma idealização utópica, visto que na caracterização temporal
esboçada pelo diretor, o afastamento quisto por Julie não é possível de ser
concretizado em sua totalidade. Com isso, a personagem percebe sua condição e
permite um relacionamento. Nos últimos minutos, Kieslowski, retoma personagens
que compuseram o enredo e a solidão própria de cada um. A mãe de Julie que a
chamava de Marie-France, a amante de Patrice, grávida, em um exame, o rapaz que
viu o acidente de carro protagonizado por Julie, e a prostituta, que criou
vínculo de amizade com a personagem em questão.
Em Blanc, Kieslowski traz o enredo sobre a
igualdade, direcionado por Karol (Zbigniew Zamachowski) e Dominique (Julie
Delpy). Dominique, francesa, deseja o divórcio, Karol, cabeleireiro polonês,
sem falar o idioma da então esposa, passa pelo tribunal sem defesas, já que
Dominique afirma a não consumação do casamento. Karol, humilhado, passa, a
partir desse momento, por diversos percalços, desde o cancelamento do cartão
bancário, até a passagem como mendigo por estações de metrô de Paris, tendo um
pente como instrumento musical. Dessa forma, chama a atenção do advogado
polonês Mikolaj, que o ajuda de forma
inusitada a voltar à Polônia. Uma mala é o meio transporte. A condição do
personagem é, veementemente, reforçada neste momento.
O diretor traça aqui
em diferentes momentos a cor branca, como representação do encontro com os
próprios conceitos, já que Karol, após enriquecer, promove a prisão de
Dominique. A vingança motiva o
entendimento de Karol, que ainda existe o sentimento mútuo. A neve, o figurino
de Karol, quando está em casa, reflete esse incômodo do personagem por não
aceitar a separação, por isso, busca a igualdade. Assim como em Blue, este apresenta plano mais
fechados, os rostos são evidenciados.
Rouge representa a fraternidade. Valentine (Irène
Jacob), modelo que vive em Genebra, após atropelar uma cachorra (Rita), vai à
busca do dono, inscrito na coleira, quando se depara com um juiz aposentado que
tem como rotina espionar as conversas telefônicas da vizinhança. A partir disso engloba a questão em torno da aceitação pelo outro, o convívio entre pessoas
de ideias adversas.
Kieslowski abre a discussão ao levar o espectador ao
apartamento de Valentine por meio do som e fios telefônicos. Subjetivas revelam
o tom do enredo. Planos abertos são explorados.
O vermelho é
recorrente em carros, objetos de cena, figurino, cenários onde Valentine
fotografa. No instante em que
Valentine se aproxima do juiz, Rita, é a ponte para tal acontecimento. O olhar
do animal direciona a ação, como um raccord.
Assim, o diretor expressa a razão da compreensão social, embora existam
discordâncias entre pensamentos, é possível desenvolver o convívio.
Kieslowski une as
obras em diferentes momentos. Os personagens cruzam os enredos. Além de exercerem a mesma movimentação durante as três obras. Os
protagonistas veem uma senhora que tenta jogar uma garrafa no lixo. O exemplo
de Julie, ao ser impedida de entrar no tribunal, durante a explanação judicial
sobre o divórcio de Karol e Dominique. Na última obra, os três personagens são
resgatados de um naufrágio. A significância desse acontecimento pode ser interpretada
como uma nova tentativa de enfrentar a vida, uma nova oportunidade conquistada.
Julie, Karol e
Valentine são personagens com diferentes composições psicológicas. Cargas
dramáticas intensas, porém sutis. “... o estabelecimento da ilusão de que a
platéia está em contato direto com o mundo representado, sem mediações, como se
todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente”
(XAVIER, 2005, p. 42). Dessa forma, se constitui a interpretação dos atores,
embora existam situações incomuns, vistas, principalmente, em Blanc, a maneira como se conduz a
atuação se dá de forma naturalista. Assim, Kieslowski apresenta enredos com
lemas históricos, porém com abordagens percebidas nesta contemporaneidade. Ações
que se cruzam sem serem percebidas. O enredo sem desfecho, já que a vida tem
continuidade.
REFERÊNCIAS
BURCH, Noel. Práxis do Cinema.
Trad. Marcelle Pithon e Regina Machado; Revisão Mirian Sancore de O. Senra. São Paulo: Perspectiva,
1969.
MARTIN, Marcel. A Linguagem
Cinematográfica. Trad. Paulo Neves; Revisão Técnica Sheila Schvartzman. São Paulo: Brasiliense,
2003.
XAVIER, Ismail. O Discurso
Cinematográfico – A Opacidade e a Transparência. 3ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2005.
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