quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Trilogia das Cores

Nathalia Cavalcante


O diretor polonês Krzysztof Kieslowski (1941 - 1996) apresenta entre 1993 e 1994 sua última obra: Trilogia das Cores. Tendo como relação as cores da bandeira francesa: Trois Couleurs – Blue (1993), Trois Couleurs – Blanc (1994) e Trois Couleurs – Rouge (1994). Além das cores, Kieslowski trouxe à tona os lemas, constituídos no período iluminista e empregados durante a Revolução Francesa (1789): Liberdade, Igualdade e Fraternidade.  O primeiro traz como mote a liberdade. Julie (Juliette Binoche) conduz a trama. Após o acidente de carro em que perde marido e filha, passa a conviver com a solidão. Kieslowski traça planos que permitem compreender o panorama no qual esta personagem está absorvida. Closes, detalhes que mostram a íris das personagens. Escolha que demonstra, de certo modo, a angústia de Julie ao se ver sozinha.
O diretor optou por marcar as cores pelas quais faz menção. O azul está presente em objetos de cena. Na fotografia, principalmente, no início do filme. “... a percepção das cores é menos de natureza física do que psicológica. Segundo Antonioni, ‘a cor não existe de maneira absoluta. (...) Pode-se dizer que a cor é uma relação entre o objeto e o estado psicológico do observador, no sentido de que ambos se sugestionam reciprocamente’” (MARTIN, 2003, p. 69). 
A piscina onde Julie pratica natação reflete a cor. A representação denota a condição psicológica da personagem que mergulha, de forma literal, nessa situação. Mesmo tentando se desvencilhar, percebe que suas atitudes são em vão. Isso porque, Julie, após o falecimento da filha e do marido, um importante compositor, procura se desfazer de tudo o que possa provocar lembranças. Aqui, a personagem deseja se libertar do passado. Porém, as lembranças a aflige. Logo, Kieslowski, aponta razões para esse incômodo. A obra, composição de Patrice, marido de Julie, não havia sido finalizada, uma encomenda realizada pelo parlamento europeu. Nos momentos em que Julie se vê acuada, a trilha incide, como um aviso. O diretor acrescenta junto a inserção sonora, o fade black, unido ao mesmo plano, fazendo parte assim, do pensamento da personagem. De acordo com Burch, “a oposição provocada pelo distanciamento do “tema” visual e a proximidade do “tema” sonoro produz um efeito surpreendente, assim como se uma nova personagem tivesse entrado nesse mesmo quadro em primeiríssimo plano” (1969, p. 120).
Kieslowski apresenta elementos figurativos que abrem discussões a cerca da condição humana, como no exemplo em que Julie encontra em seu novo apartamento uma ratazana com filhotes. A protagonista não suporta ver a situação, não apenas pelo fato de encontrar esses animais considerados repugnantes, mas também, por não tolerar qualquer contato com representação materna. Assim como no momento em que está na piscina e crianças pulam. Julie se sente incomodada, acuada.
Blue revela que a liberdade almejada pela protagonista, pode ser considerada uma idealização utópica, visto que na caracterização temporal esboçada pelo diretor, o afastamento quisto por Julie não é possível de ser concretizado em sua totalidade. Com isso, a personagem percebe sua condição e permite um relacionamento. Nos últimos minutos, Kieslowski, retoma personagens que compuseram o enredo e a solidão própria de cada um. A mãe de Julie que a chamava de Marie-France, a amante de Patrice, grávida, em um exame, o rapaz que viu o acidente de carro protagonizado por Julie, e a prostituta, que criou vínculo de amizade com a personagem em questão. 

Em Blanc, Kieslowski traz o enredo sobre a igualdade, direcionado por Karol (Zbigniew Zamachowski) e Dominique (Julie Delpy). Dominique, francesa, deseja o divórcio, Karol, cabeleireiro polonês, sem falar o idioma da então esposa, passa pelo tribunal sem defesas, já que Dominique afirma a não consumação do casamento. Karol, humilhado, passa, a partir desse momento, por diversos percalços, desde o cancelamento do cartão bancário, até a passagem como mendigo por estações de metrô de Paris, tendo um pente como instrumento musical. Dessa forma, chama a atenção do advogado polonês Mikolaj, que o ajuda de forma inusitada a voltar à Polônia. Uma mala é o meio transporte. A condição do personagem é, veementemente, reforçada neste momento.

O diretor traça aqui em diferentes momentos a cor branca, como representação do encontro com os próprios conceitos, já que Karol, após enriquecer, promove a prisão de Dominique. A vingança motiva o entendimento de Karol, que ainda existe o sentimento mútuo. A neve, o figurino de Karol, quando está em casa, reflete esse incômodo do personagem por não aceitar a separação, por isso, busca a igualdade. Assim como em Blue, este apresenta plano mais fechados, os rostos são evidenciados.  
Rouge representa a fraternidade. Valentine (Irène Jacob), modelo que vive em Genebra, após atropelar uma cachorra (Rita), vai à busca do dono, inscrito na coleira, quando se depara com um juiz aposentado que tem como rotina espionar as conversas telefônicas da vizinhança. A partir disso engloba a questão em torno da aceitação pelo outro, o convívio entre pessoas de ideias adversas.
Kieslowski abre a discussão ao levar o espectador ao apartamento de Valentine por meio do som e fios telefônicos. Subjetivas revelam o tom do enredo. Planos abertos são explorados.
O vermelho é recorrente em carros, objetos de cena, figurino, cenários onde Valentine fotografa. No instante em que Valentine se aproxima do juiz, Rita, é a ponte para tal acontecimento. O olhar do animal direciona a ação, como um raccord. Assim, o diretor expressa a razão da compreensão social, embora existam discordâncias entre pensamentos, é possível desenvolver o convívio.
Kieslowski une as obras em diferentes momentos. Os personagens cruzam os enredos. Além de exercerem a mesma movimentação durante as três obras. Os protagonistas veem uma senhora que tenta jogar uma garrafa no lixo. O exemplo de Julie, ao ser impedida de entrar no tribunal, durante a explanação judicial sobre o divórcio de Karol e Dominique. Na última obra, os três personagens são resgatados de um naufrágio. A significância desse acontecimento pode ser interpretada como uma nova tentativa de enfrentar a vida, uma nova oportunidade conquistada.
Julie, Karol e Valentine são personagens com diferentes composições psicológicas. Cargas dramáticas intensas, porém sutis. “... o estabelecimento da ilusão de que a platéia está em contato direto com o mundo representado, sem mediações, como se todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente” (XAVIER, 2005, p. 42). Dessa forma, se constitui a interpretação dos atores, embora existam situações incomuns, vistas, principalmente, em Blanc, a maneira como se conduz a atuação se dá de forma naturalista. Assim, Kieslowski apresenta enredos com lemas históricos, porém com abordagens percebidas nesta contemporaneidade. Ações que se cruzam sem serem percebidas. O enredo sem desfecho, já que a vida tem continuidade.


REFERÊNCIAS

BURCH, Noel. Práxis do Cinema. Trad. Marcelle Pithon e Regina Machado; Revisão Mirian Sancore de O. Senra. São Paulo: Perspectiva, 1969.

MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Trad. Paulo Neves; Revisão Técnica Sheila Schvartzman. São Paulo: Brasiliense, 2003.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico – A Opacidade e a Transparência. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.





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