segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A Via Láctea

Por Nathalia Cavalcante

        Heitor e Júlia formam o casal fio condutor da trama realizada por Lina Chamie. Repleto de labirintos que fazem o espectador adentrar na história que apresenta um relacionamento em conflito, envolvendo metáforas em conjunto com a cidade que, consecutivamente, se torna mais uma personagem. Uma característica marcante de uma narrativa não-clássica, empregada nessa obra, ao som de música clássica intensa, de acordo com a aflição de Heitor, é a exposição imediata desse personagem, em meio a uma desordem interna. A situação é revelada de modo a não identificar, em primeira instância, a razão que o fez se encontrar em tal estado.
Alice Braga (Júlia), Marco Ricca (Heitor) e Lina Chamie
         “A Via Láctea” (2007) não oferece o tempo ao espectador para absorver as informações. Heitor e a cidade são exibidos na tela. O personagem está estarrecido e, a princípio, somente ele tem o conhecimento de quê o levou àquela atitude. Lina Chamie proporciona de modo moderado os dados necessários para construir o questionamento proposto por sua obra. A não-linearidade auxilia nesse quesito, pois torna o enredo em um emaranhado de elementos a serem compreendidos, ou pelo menos, criadas possibilidades adversas em torno do tratado. Mesmo apresentando subsídios que, no primeiro contato não oferecem respostas concretas, “A Via Láctea” possui um plot rico em detalhes, que permitem desenvolver um ritmo acerca das situações pautadas na história. Desse modo, Metz, reforça que,

Um grande e permanente equívoco paira sobre a definição do cinema ‘moderno’. Subentende-se e às vezes afirma-se que o ‘jovem cinema’ o ‘cinema novo’, teria ultrapassado o estágio da narração, que o filme moderno seria objeto absoluto, obra que pode ser percorrida em qualquer direção, que teria expulso de certa forma a narratividade, constitutiva do filme clássico (1972, p. 173).


Isso porque, além da não-linearidade, a diretora interage com o imaginário de Heitor. Devaneios construídos em um estado de coma, compreendido nos minutos finais do filme. Logo, “acentua-se um conflito dialético entre a realidade e a ficção, o destino e a história, o real e o imaginário” (SGANZERLA, 2001, p.23). Conexão possível de ser feita com o relacionamento com a cidade.  Assim, como no instante em que o casal conversa em um terraço, sobre o tempo que poderia durar a relação. Nesse momento, estão imersos em posicionamento plongée. São Paulo está abaixo, estando o casal à mercê de uma condição inquietante, perturbadora.

Como a ficção só se revela para a leitura através da ordem da narrativa que aos poucos a constitui, uma das primeiras tarefas do analista é descrever essa construção. A ordem, porém, não é simplesmente linear: não se deixa decifrar apenas com o próprio desfile do filme. Também é feita de anúncios, de lembranças, de correspondências, de deslocamentos, de saltos que fazem da narrativa, acima de seu desenvolvimento, uma rede significante, um tecido de fios entrecruzados em que um elemento narrativo pode pertencer a muitos circuitos (...) (AUMONT ET AL, 1995, p. 108).

        A diretora apresenta recursos que denotam a um caminho. As primeiras aparições de Heitor, consecutivamente, as primeiras imagens do filme, o revelam em uma ação de confusão, na sequência, percebe-se apenas que um carro freou ao encontrar o protagonista. Esse mesmo momento é repetido em outra ocasião, sendo compreendido que, essa ação provocou o acidente, próximo ao desfecho. Dentro desse jogo não-linear, Lina Chamie, insere elementos que se conectam ao encerramento, como:  o aviso de locutores da rádio, em relação ao acidente com uma pessoa; passagem de uma carreata fúnebre; o som de sirene de ambulância; batimentos cardíacos.
          Contudo, essa obra fílmica mostra ao espectador a fábula (história), desse casal em descoberta, tem em seu plot, movimentações, tanto de imagem quanto de som, que conduzem de modo atenuado ao destino de Heitor e Júlia. A escolha pela não-linearidade e repetições de cenas, porém com a focalização adversa, como no momento em que o casal se conhece em um teatro, após o primeiro ato da peça “As Bacantes”, em que o personagem foi despido. Inicialmente, Heitor é o guia, ocorrendo a condução de Júlia após o desdobramento de fases diferentes desse devaneio. Sobre a linearidade, Aumont et al, dizem,

A ordem compreende as diferenças entre o desenvolvimento da narrativa e o da história: acontece, com frequência, que a ordem de apresentação dos acontecimentos dentro da narrativa não seja, por motivos de enigma, suspense ou interesse dramático, aquela na qual eles supostamente deveriam se desenvolver. Trata-se, portanto, de procedimentos de anacronia entre as duas séries. Assim, pode-se mencionar depois, na narrativa, um acontecimento anterior na diegese: é o caso do flashback, mas também de qualquer elemento da narrativa que obrigue à reinterpretação de um acontecimento que fora apresentado ou compreendido anteriormente de uma outra forma (1995, p. 116).

            No teatro, Heitor pôde ter o primeiro contato com sua mentora, Júlia. A jovem cita um trecho do monólogo de Desdêmona, personagem de, “Otelo, o Mouro de Veneza”, de William Shakespeare. Ali, Júlia inicia sua interferência na história de Heitor, o provocando, de modo a chamá-lo à vida, à aventura. Porém, o homem não se vê no mesmo universo de Júlia, por conta da diferença de idade. Assim, pode-se questionar a identificação de Heitor com o anti-herói, pois tende a se comportar de modo indiferente em relação aos acontecimentos a sua volta, de certo modo acuado. Tendo como principal iniciativa manter o relacionamento com Júlia. Essa personagem é a fortaleza de Heitor, que se posiciona de forma fragilizada, se escondendo no papel de professor e escritura de livros.
            Entretanto, quando percebe a invasão de Tiago (Fernando Alves Pinto), na relação, reconhece o chamado da namorada e parte ao seu encontro. Mas, a partir desse instante Heitor é tomado pela inconsciência. Os elementos apresentados ao longo do filme remetem à sua morte. Tiago torna-se seu guardião do limiar, interferindo, no relacionamento. Instigando Heitor a criar sombras, como o ciúme exaltado, fato que provoca o acidente que culminou em sua morte, por andar desesperado pela rua. A partir disso, Heitor, estabelece ligação com elementos significantes na construção de sua personalidade, como por exemplo, sua infância. Um cachorro é atropelado, que pertencia a um menino [ele quando criança]. O sangue do animal impregna em sua camisa, na mesma posição de seu ferimento, resultante do acidente.
         
  A interação de Júlia com os carneiros, lembranças de sua mãe, quando o ninava, e a conexão com essa mulher em uma cama de hospital até o falecimento, presenciado por Heitor. A intervenção de um assaltante, ao provocar questionamentos, afirmando que o personagem não precisaria do relógio. No entanto, quando a situação de Heitor é esclarecida, o espectador se depara com Júlia, ao lado de seu namorado, segurando em sua mão desfalecendo e, em seu pulso o relógio, comprovando a alucinação de Heitor.

Frequentemente o objectivo é mesmo praticar uma anti-ilusão como forma de perturbação, provocação e interpelação do espectador. Daí que a coerência seja muitas vezes substituída por premissas criativas assentes na colagem e montagem mais ou menos acidentais e abruptas de elementos, no ciclo ininterrupto e repetitivo do loop, na rasura ou denúncia dos próprios materiais fílmicos, na estranheza da justaposição de temas e motivos visuais muitas vezes heterogéneos e na manipulação explícita da velocidade, das texturas ou das tonalidades das imagens (NOGUEIRA, p.122).
            Dessa forma, é possível acrescentar que “A via láctea” propõem indagações consistentes a respeito de conflitos internos dos personagens em questão. A identificação com o gênero drama pode ser afirmada, por razões do desfecho, mas essa narrativa não-clássica se concentra de modo despreocupado em relação a essa “classificação”. A observação se aproxima ao fato de se prender às relações humanas e como desencadeiam.






Referências Bibliográficas
AUMONT, Jacques; BERGALA, Alain; MARIE, Michel; VERNET, Marc. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995.

SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.

METZ, Christian. A significação do cinema. Trad. Jean-Claude Bernardet. São Paulo: Perspectiva, 1972.

NOGUEIRA, Luís. Géneros Cinematográficos – Manuais de Cinema II. Covilhã: Livros LabCom, 2010.

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