quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Gravidade

   Por Nathalia Cavalcante  
     
     A narrativa clássica apresenta características que a faz obedecer a determinados pontos que podem auxiliar na compreensão imediata, por parte do espectador. Isso porque, filmes inseridos nesse contexto expõem causas de um problema e seus efeitos. Geralmente, são lineares, mas podem conter o recurso de flashbacks, porém evitam o desenvolvimento contínuo de idas e vindas da trama. Existe um conflito a ser solucionado e motivações para tais acontecimentos. 
Entre outros elementos, a prolixidade é absorvida como meio de evidenciar as razões pelas quais surgiram os incidentes. A decupagem empregada nessas obras corresponde ao objetivo a ser alcançado pelo realizador. Xavier aponta que,

As correlações entre o desenvolvimento dramático e o ritmo da montagem, assim como o jogo de tensões e equilíbrios estabelecido no desfile das configurações visuais, são dois instrumentos à disposição de qualquer cineasta. O que é característico da decupagem clássica é a utilização destes fenômenos para a criação, no nível sensorial, de suportes para o efeito de continuidade desejado e para a manipulação exata das emoções (2005, p.34).
Alfonso Cuarón
     
O diretor, Alfonso Cuarón, imprime em “Gravidade” (2013) a organização linear, discutida a seguir. Com isso, se apropria dessa redundância, pois a história necessita ressaltar os dilemas e a tentativa de uma engenheira médica – em missão espacial –, para retornar à sua realidade.  
     
     Alfonso Cuarón traça a história de uma Engenheira médica, que está em sua primeira missão espacial, Dra. Ryan Stone, acompanhada pela tripulação, porém de forma constante por Matthew Kowalski (George Clooney), um astronauta veterano. Por razões de um choque com estilhaços oriundos da um satélite, a nave estadunidense é atingida, levando a cabo a vida de toda a tripulação, restando a princípio, Stone e Kowalski. Devido a novas interferências, Stone torna-se a única sobrevivente, criando um embate em torno de suas tentativas de voltar à Terra. A engenheira, neste instante, faz a travessia do primeiro limiar, não podendo voltar atrás em suas decisões (VOGLER, 2006).
     O diretor, ao longo do enredo, não se confronta com artifícios, de certo modo, corriqueiros como o flashback. O filme é relatado de forma linear, a partir do instante em que os personagens já estão efetuando uma ação. Sendo assim, o plot de “Gravidade” aborda a missão, já em andamento, até o desfecho de Ryan, quando retorna ao seu destino. Cuarón apresenta o recorte desse momento da vida das personagens. Sendo assim, a diegese fílmica.
     De acordo com Vanoye, “O termo diegese, próximo, mas não sinônimo de história (pois de um alcance mais amplo), designa a história e seus circuitos, a história e o universo fictício que pressupõe (ou ‘pós-supõe’), em todo caso, que lhe é associado (...)” (1994, p.10). O diretor, portanto, revela os percalços vivenciados pela protagonista de modo a acompanhar gradativamente sua busca pelo objetivo. A questão do flashback, mencionada anteriormente, teria espaços dentro da trama, porém a opção de Cuarón foi a de manter a linearidade e a focalização no contexto das ações de Ryan.


     Isso porque, por exemplo, no instante em que a protagonista é indagada por seu mentor[1], Kowlaski, sobre sua vida pessoal, em que Ryan, a heroína[2], relata sua rotina, de certo modo, apática, direcionando ao acontecimento da morte de sua filha, Sarah. Neste momento, poderia haver o recurso do flashbak, com lembranças de seu cotidiano e a filha, ainda em vida, ou mesmo no instante do acidente que culminou no falecimento. No entanto, o espectador mantém a atenção às ações das personagens, que embora estejam ansiosos em chegar ao destino – base russa – os movimentos se tornam lentos, recurso empregado de acordo com os devaneios e recordações do instante. De um plano conjunto, o espectador passa a observar em um primeiro plano, Ryan, pois neste momento existe a relevância de instigar o entendimento da situação emocional dessa personagem. De acordo com Xavier,

(...) temos a continuidade produzida como resultado de uma manipulação precisa da atenção do espectador, onde as substituições de imagem obedecem a uma cadeia de motivações psicológicas. Passamos de um plano de conjunto a um primeiro plano de um rosto porque, da própria natureza da ação representada, surge uma solicitação que é atendida justamente por esta mudança de plano (2005, p.33).

     Esse recurso é agregado às cenas em que Ryan deve arriscar decisões importantes para sua sobrevivência. Kowalski é o responsável por impulsionar e motivar Ryan a dar continuidade à missão de voltar à Terra, apesar dos momentos de medo pressentidos pela protagonista. A engenheira, contudo, tende a revelar ações de encorajamento, perante o seu chamado à aventura, ou seja, a passar pelo desconhecido para alcançar a meta. Dessa forma, Kowalski é o elemento propulsor, como no instante em que Ryan recusa o chamado e se vê acuada e aceitando a possibilidade da morte na estação chinesa, depois de ter passado pela russa. O experiente astronauta reaparece no imaginário da personagem, para indicar o caminho a ser seguido, e que ainda restavam alternativas para esse fim. Sobre essa questão, Bordwell, comenta que,

O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos definidos, empenhados em resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos. Nessa sua busca, personagens entram em conflito com outros personagens ou com circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota decisivas, a resolução do problema e a clara consecução ou não-consecução dos objetivos (2005, p. 278-279).

     Dessa forma, o exemplo de “Gravidade”, como narrativa clássica, traça a concatenação do enredo de modo objetivo, gera um escopo, possível de ser identificado pelo espectador. Nesse exemplo existe a objetividade e a clara apresentação da trajetória e os meandros a serem solucionados durante a trama. Para tanto, Bordwell (2005), apresenta a designação de fábula e syuzhet. De acordo com o autor, fábula está relacionada à história a ser contada em ordem cronológica dos acontecimentos, syuzhet, oferece a exposição ordenada das ações da fábula.
     Assim, “Gravidade” harmoniza as ações em que o espectador observa, em termos de imagem e sonoridade, desde a apresentação da ambientação do filme, com a Terra em evidência, na primeira imagem com ausência de som, já que os personagens estavam em uma missão espacial, onde o som não se propaga. Neste momento, é possível ouvir ao longe a conversa estabelecida por Ryan e Kowalski. Em conjunto, Cuarón abre espaço para planos subjetivos, em que o espectador tem a oportunidade de enxergar por meio da visão de Ryan. Sobre esse aspecto, Browne, menciona que, “a identificação nos convida, como espectadores, a estar em dois lugares ao mesmo tempo: onde está a câmera e ‘com’ a pessoa representada” (2005, p.240). A fábula, além disso, revela o que o espectador pode deduzir a partir do que é visível. Ou seja, as relações não explícitas entre Ryan e sua vida cotidiana, levando a uma possível fragilidade da engenheira.
     Com isso, embora a história esteja inserida em ambiente incomum, além das ações exageradas nas tentativas de ida à estação russa e, em seguida, à chinesa, de modo incrível, a questão a ser abordada é a narração clássica imbuída por Cuarón. “Gravidade” soma a linearidade à narração clássica, evidenciando a todo o momento o objetivo da protagonista.

No plano do syuzhet, o filme clássico respeita o padrão canônico de estabelecimento de um estado inicial de coisas que é violado e deve ser restabelecido. Na verdade, os manuais hollywoodianos há muito insistem em uma fórmula que é resgatada pela análise estrutural mais recente: a trama é composta por um estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação do elemento perturbador (BORDWELL, 2005, p. 279).


 Dentro desse contexto, a obra de Cuarón se relaciona de forma híbrida a dois gêneros: drama e ação. O primeiro, pois existem elementos dramáticos relacionados à psicologia da personagem e suas autoindagações, bem como, sua relação com o Universo, estando absorvida por ele, e passando por conhecimento em relação à sua própria capacidade. Porém, sem aprofundamento.  Nogueira menciona diferentes gêneros e suas respectivas características. O autor traz distintas referências sobre o drama. A respeito de “Gravidade”, o drama bélico relatado por Nogueira, se aproxima das particularidades do filme em questão. Isso porque, Ryan tende a se fortalecer e proporcionar seu autoconhecimento.

O drama bélico remete necessariamente para circunstâncias de elevada violência como são necessariamente os cenários de guerra ou as suas consequências; perante o inimigo e perante a morte, o indivíduo questiona ou descobre a sua plena e autêntica humanidade (ou a sua ausência) (2010, p. 24).

O segundo gênero refere-se ao modo como as personagens são expostas às missões. Tendo de passar por estações espaciais de modo eficaz, como ocorreu com Ryan.

A constante exposição a uma sucessão de filmes leva o público a reconhecer que certos elementos formais são dotados de um significado extra. (...) Isso pode ser mais bem compreendido através da noção de que um filme de gênero depende de uma combinação de novidade e familiaridade (BUSCOMBRE, 2005, p. 315).

Sobre as características de uma obra fílmica de ação, Nogueira lembra que, “o seu objectivo é, portanto, proporcionar ao espectador um experiência [sic] de grande hedonismo. Os filmes tendem, desse modo, a esgotar o seu potencial hermenêutico muito rapidamente” (2010, p. 18).
É interessante salientar as questões políticas, apontadas de modo subjetivo, sem explicar o porquê da presença. Cuarón no primeiro instante revela a estação estadunidense, sendo posteriormente, atingida por estilhaços da estação russa. Ryan e Kowalski, depois do choque, conseguem sobreviver e partem a caminho desta que os atingiu. Ali, somente Ryan encontra refúgio, demonstrando sua fragilidade em uma posição fetal, a harmonia da arte e fotografia reforça essa possibilidade.
Com a iminência da morte, a engenheira se desloca para fora, com a intenção de retirar o paraquedas que impedia a sua fuga. Os trajes russos, vestidos pela protagonista são modestos, em relação aos de seu país. Na estação chinesa, a comunição é restrita. Como forma de auxiliá-la, Kowalski (mentor), reaparece. Dessa forma, “Gravidade” destaca suas características de narração clássica, com ferramentas que permitem o dinamismo do enredo, sem a interferência de elementos adversos, que possam desviar-se desse contexto.

TRAILER
                                                                   



[1]“A função do Mentor é preparar o herói para enfrentar o desconhecido” (VOGLER, 2006, p.35).

[2] “(...) a história de um herói é sempre uma jornada. Um herói sai de seu ambiente seguro e comum para se aventurar em um mundo hostil e estranho” (VOGLER, 2006, p.35).


REFERÊNCIAS

BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org). Teoria contemporânea do cinema. Volume II. São Paulo: Senac, 2005.

BROWNE, Nick. O espectador-no-texto: a retórica de No tempo das diligências. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org). Teoria contemporânea do cinema. Volume II. São Paulo: Senac, 2005.

BUSCOMBRE, Edward. A idéia de gênero no cinema americano. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org). Teoria contemporânea do cinema. Volume II. São Paulo: Senac, 2005.

NOGUEIRA, Luís. Géneros Cinematográficos – Manuais de Cinema II. Covilhã: Livros LabCom, 2010.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico – A Opacidade e a Transparência. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
            




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